Antecipação de recebíveis, um caso controvertido
Publicado por Escritório Jorge Lobo em 25/03/2024
Jorge Lobo *
“As organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa.” (Willian Lazier)[1]
1. A teoria da discricionariedade judicial nos casos controvertidos
A antecipação de recebíveis, de que são espécies o desconto bancário, a faturização, ou fomento mercantil, ou factoring, a cessão de direitos creditórios, ou securitização de recebíveis, e a cessão fiduciária de direitos creditórios, doravante denominada antecipação de recebíveis, foi criada e implementada – em larga escala e com êxito – com a finalidade de propiciar crédito rápido para fortalecer o capital de giro e estruturar o fluxo de caixa das pequenas, médias e grandes empresas.
Se as causas da antecipação e da securitização[2] de recebíveis são idênticas para a fiduciante e a securitizada (capitalizarem-se) e idênticas, as finalidades para a fiduciária e securitizadora (obter lucros com minimização dos riscos), por que ambas não estão excluídas dos efeitos da recuperação judicial?
Dir-se-á com razão: a uma, porque a antecipação de recebíveis é uma cessão condicional, limitada, resolúvel; a securitização, uma cessão pura e simples, definitiva, irrevogável, irretratável, irreversível (salvo se invalidada por decreto judicial); a duas, devido à omissão do legislador em regulá-la.
Essa incompreensível e injustificável omissão gerou um caso controvertido[3] (nos. 2 e 3 infra), cuja solução exige um mergulho nos fatos e atos do cotidiano das empresas dedicadas à extração mineral, ao agronegócio, ao comércio, à indústria e à prestação de serviços e o uso prudente do poder discricionário do juiz.[4]
Esse protagonismo judicial, esse poder discricionário do juiz,[5] deve ser exercido a partir de uma abordagem empírica e econômica e com base no “critério pragmatista das consequências práticas” [6], porque a “interpretação dos textos não é um exercício de lógica”. [7]
2. Fundamentos a favor e contra a submissão da antecipação de recebíveis aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante.
Atenta leitura de especialistas na matéria e da jurisprudência dos tribunais evidencia que o emprego apenas dos elementos filológico, lógico, sistemático e teleológico na interpretação do § 3º, do art. 49, da LFRE é insuficiente.
Se não, vejamos.
À míngua de disciplina legal e apesar da orientação do c. STJ, permanece a polêmica se a antecipação de recebíveis está sujeita aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante, o que redunda no pior dos males: a insegurança jurídica.
Ambas as correntes de opinião alinham respeitáveis argumentos – todos de ordem exclusivamente jurídica –.
Os favoráveis à sujeição dos créditos decorrentes da antecipação de recebíveis ao regime legal da recuperação da empresa têm se baseado, em síntese, nos seguintes fundamentos:
(1º) as normas dos arts. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728, de 1.965, e 49, § 3º, da LRFE são excepcionais, por isso devem ser interpretadas restritivamente, sendo, por conseguinte, vedado ao exegeta equiparar a cessão fiduciária de recebíveis à alienação fiduciária em garantia de coisas móveis;
(2º) se o legislador quisesse equiparar a cessão fiduciária de créditos à propriedade fiduciária de bens móveis o teria feito de forma expressa, tal qual no art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728, de 1.965, incluído pela Lei nº 10.931, de 2.004;
(3º) créditos garantidos por direitos creditórios submetem-se ao § 5º, do art. 49, da LRFE, que trata de garantia fiduciária, e não ao § 3º, que regula o crédito do titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis;
(4º) eventuais pagamentos ao fiduciário redundam, em última análise, em violação do princípio da igualdade entre os credores e a inversão dos critérios de preferência eleitos pelo legislador e
(5º) a exclusão dos recebíveis da recuperação judicial atenta contra o princípio da preservação da empresa, que inspira o art. 47 da LRFE[8], e busca proteger a atividade empresarial.
A Terceira e Quarta Turmas do Superior Tribunal de Justiça têm decidido, embora, às vezes, por maioria de votos, que a antecipação de recebíveis, por possuir natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante.
Eis os principais fundamentos em que se escudam os ministros com votos vencedores:
(1º) os arts. 49, § 3º, da LRFE c/c. 82 e 83 do Código Civil (CC) deixam claro que os bens móveis são, para todos os efeitos legais, “os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”, ex vi do art. 83 do CC, inclusive os bens incorpóreos, como os recebíveis;
(2º) o art. 49, § 3º, da LRFE, ao mencionar o gênero — bens móveis — não haveria porque especificar suas categorias arroladas nos arts. 82 e 83 do CC, assim como não se fez necessário discriminar o sentido legal de bens imóveis (CC, arts. 79 a 81);
(3º) o fato de o art. 49, § 3º, da LRFE utilizar a palavra coisa (bens corpóreos) em nada diminui a garantia outorgada por lei aos titulares de cessão fiduciária de bens incorpóreos, tal qual os créditos, e,
(4º) o direito positivo brasileiro só admitia a propriedade fiduciária para fins de garantia de bens móveis infungíveis (CC, art. 1.361), situação que foi profundamente alterada pelo art. 66-B da Lei nº 4.728, de 1.965, com a redação da Lei nº 10.931, de 2.004, para passar a abranger, ex vi do art. 49, § 3º, a “alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direito sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito”.
3. O dissídio jurisprudencial no TJSP sobre a antecipação de recebíveis não performados
Criteriosa pesquisa sobre a antecipação de recebíveis não performados, realizada por Teixeira Fortes Advogados, concluiu que há um gravíssimo dissenso sobre essa matéria no Tribunal de Justiça de São Paulo.
A propósito do minudente trabalho, João Paulo Ribeiro Cucatto escreve: “(…) foram analisadas 30 decisões proferidas entre os anos de 2.014 e 2.022 a respeito deste assunto, e se observou que as 1ª e 2ª Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP (responsáveis por julgar recursos em recuperação judicial) mantém um placar bastante apertado:”
“Neste universo de decisões analisadas, em 16 ocasiões, decidiu-se que estes créditos não estão sujeitos ao processo de recuperação, enquanto em 14 adotou-se conclusão no sentido contrário, para sujeitar os créditos ao plano de reestruturação econômico-financeira do devedor.”
“Mesmo dentro das próprias Câmaras Reservadas de Direito Empresarial não existe consenso. A pesquisa constatou que, no caso da 1ª Câmara, cerca de 65% das decisões excluem o crédito do processo recuperacional. Na 2ª Câmara, este cenário foi observado em aproximadamente 38% das decisões. Consideradas todas as decisões avaliadas, também se verificou que 26% não são unânimes.” [9]
Dentre os julgamentos, destaca-se o da c. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial, no Ag.Inst. nº 2193987-06.2019.8.26.0000, Rel. Des. Grava Brazil, reg. 23/06/2.020, cuja ementa do v. acórdão resume a controvérsia: “Cessão fiduciária em garantia de créditos futuros – Créditos performados (constituídos) até a data de ajuizamento do pedido de recuperação judicial, que são de titularidade do credor fiduciário e podem, ante o inadimplemento da obrigação principal, ter seu produto por ele apropriado – Créditos não performados (não constituídos) na data do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, em relação aos quais a garantia é ineficaz – Propriedade fiduciária não constituída na data de ajuizamento do pedido de recuperacional, não se podendo constituir posteriormente, ante o que dispõe o art. 49, caput, da lei 11.101/05 – À luz do que dispõe o art. 49, § 3°, do mesmo diploma legal, a existência da propriedade fiduciária deve ser aferida na data do pedido de recuperação – Retenções relativas aos créditos a performar, ou seja, aos recebíveis constituídos posteriormente à distribuição da recuperação que devem ser integralmente liberados à devedora – Precedentes desta C. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial – Decisão agravada reformada em parte. Recurso provido em parte, com observação e aplicação de multa por litigância de má-fé.”
Em seu voto, após transcrever partes de v. acórdãos do c. STJ, o e. Relator ressalta: “É necessário, contudo, distinguir que uma coisa é a garantia constituída com base em créditos futuros, no momento da celebração do contrato, que venham a performar até o momento do pedido recuperacional, daqueles não performados, que dizem com ou que sejam oriundos de negócios – compra e venda ou prestação de serviços – ainda não realizados ou que somente serão realizados após o pedido de recuperação judicial.”
E enfatiza: “Aqui reside o ponto fulcral do entendimento ora esposado, distinguir, dentre os créditos futuros cedidos fiduciariamente em garantia, aqueles já performados (i.e., créditos já constituídos) na data do pedido de recuperação judicial, daqueles ainda não performados (i.e., ainda não constituídos). Essa distinção – que, s.m.j., não foi objeto de apreciação pelo C. STJ nos julgados cotejados – é de suma importância no caso em exame.” (grifo do original)
E esclarece: “Com efeito, a cessão fiduciária de créditos futuros se sujeita ao regime jurídico análogo ao da compra e venda de coisa futura. Não existe propriedade sobre algo que ainda não existe. A propriedade somente se constitui a partir do momento em que seu objeto passa a existir.”
A seguir, reporta-se a Francisco Sátiro de Souza Jr.: “(…) o caput do art. 49 da Lei 11.101/2.005 estabelece como marco para averiguação da classificação do crédito a data da distribuição do pedido de recuperação judicial. E no caso de cessão fiduciária de créditos futuros, se o bem dado em garantia (o crédito) ainda não existir nesse momento, a ineficácia da garantia deve ser reconhecida com a classificação do crédito como quirografário.”[10]
E arremata: “Por fim, anote-se que essa distinção entre créditos performados e a performar, na data do pedido de recuperação judicial, sendo inoperante a garantia em relação aos segundos, já foi adotada por esta C. 2ª. Câmara, embora com outros fundamentos, mas com similar racional.”
Com razão o e. Desembargador Grava Brazil, porquanto a matéria examinada, debatida e julgada pela c. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP (2ª. CRDE-TJSP) “não foi objeto de apreciação pelo C. STJ nos julgados cotejados”, e, frise-se, a distinção entre créditos performados e não performados apenas uma única vez foi objeto de decisão de mérito no STJ[11].
4. Os recebíveis não performados nos julgamentos do STJ
A cessão fiduciária de direitos creditórios não performados foi objeto do Agravo de Instrumento em Recurso Especial nº 1.932.780-SP (2.021/0110156-7), distribuído à e. Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,j. 29/11/2.021, DJe. 02/12/2.021.
O Relatório diz: “Insistem (as Agravantes) na tese” – eis o “objeto” do Agravo – “de que os créditos a serem performados após o pedido de recuperação judicial diferem daqueles já performados naquele marco temporal. Na sua visão somente existem os performados até a data do pedido de recuperação judicial.”
“(…) As Agravantes assim verberam (e-STJ, fl. 2.005): o que ‘se quer demonstrar neste RECURSO, especialmente, é o fato de que É INSUBISISTENTE A GARANTIA REAL DE ALGO INEXISTENTE, já que os direitos creditórios sobre esta possível industrialização é FUTURO; INEXISTENTE; VIRTUAL e ALEATÓRIO’ (e-STJ, fl. 2.032).” (grifo do original)
Destaca que as Agravantes “resumem a irresignação (e-STJ, fl. 2.012): 42. (…) os creditos cedidos fiduciariamente em garantia performados até a data do ajuizamento do pedido de recuperação judicial são propriedade do credor fiduciário, abarcados pelos § 3º, do art. 49. Em relação a estes, deve ser mantida a decisão agravada. 43. No que tange aos créditos não performados e, portanto, inexistentes até a data do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, em relação aos quais inexiste propriedade fiduciária constituída naquela data, a cessão fiduciária anterior resta ineficaz.”
Na fundamentação, o e. Relator reproduz excerto do v. acórdão da c. TerceiraTurma no REsp. nº. 1.797.196/SP, de sua lavra, j. 09/04/2.019, DJe. 12/04/2.019: “5. Registre-se, inclusive, que a lei especial de regência (Lei n. 10.931/2.004, que disciplina a cédula de crédito bancário) é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, per si, inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido).”
À unanimidade, foi negado provimento ao Agravo Interno, esclarecendo a ementa do v. acórdão: “Contrato de cessão fiduciária em garantia de recebíveis. Ausência de diferença entre créditos a serem performados após a decisão de processamento da recuperação judicial e aqueles já performados até aquele marco temporal (…) 3. É desinfluente, portanto, o momento em que é performado, se antes ou depois do processamento da recuperação. Julgados desta Corte nesse sentido.”[12]
Em dois outros julgamentos – o do REsp. nº 1.797.196/SP (2.017/0238573-1), j. 09/04/2.019, DJe. 12/04/2.019, e o do AgInt nos EDcl no AgInt no REsp nº 1.816.967/PR (2.019/0152954-5), j. 31/08/2.020, DJe. 08/09/2.020, – ambos da Terceira Turma e ambos relatados pelo e. Min. Marco Aurélio Bellizze – os créditos não performados são empregados como argumento e não são examinados como matéria de mérito, consoante sê constata do voto do e. Relator no citado agravo interno: “(…) A controvérsia posta no presente recurso especial cinge-se a saber se é possível a exclusão do credor titular da posição fiduciária dos efeitos da recuperação judicial (…), (sustentando a Recorrente) “que a garantia não foi regularmente constituída, em razão da ausência de individualização dos creditos.”[13] (grifo do original) (a Quarta Turma ainda não enfrentou a matéria).
Há, também, duas decisões monocráticas da e. Ministra Nancy Andrighi em que antecipação de recebíveis não performados é mencionada, porém a questão de fundo versava:
(a) no REsp. nº 1.934.153/SP (2.021/0116128-1), j. 05/08/2.021, DJe. 06/08/2.021,se “(…) a condição de proprietário é alcançada desde a contratação da garantia, de modo que, uma vez preenchidos os requisitos exigidos pelos arts. 66-B da Lei de Mercado de Capitais e 18 da Lei nº 9.514/97, opera-se a transferência plena da titularidade para o cessionário (…)”;
(b) no AREsp. nº 2.320.092/SP (2.023/0073203-7), j. 05/06/2.023, DJe. 12/06/2.023,se é “dispensável a discriminação individualizada de todos os títulos representativos do crédito para perfectibilizar o negócio fiduciário (…).”
Apesar do resultado do julgamento do citado REsp. nº 1.932.780-SP, da relatoria do e. Ministro Marco Aurélio Bellizze, o c. TJSP tem, por vezes, contrariado a orientação do c. STJ, i.e., acórdãos (a) da 1ª. CRDE-TJSP no AI nº. 2295554-12.2.021.8.26.0000, j. em 16/08/2.022, e (b) da 2ª CRDE-TJSP: (b.i) no AI nº. 2191193-41.2.021.8.26.0000, j. em 01/06/2.022; (b.ii) no AI nº. 2137944-78.2.021.8.26.0000, j. em 01/06/2.022; (b.iii) no AI nº. 2005901-46.2.022.8.26.0000, j. em 14/06/2.022.
5. A revisão da LFRE.
Não obstante persista a controvérsia na doutrina e se acumulem as divergências na jurisprudência dos tribunais de Justiça, a extensa revisão da LFRE (melhor teria sido reformá-la) não regulou a cessão fiduciária de direitos creditórios, espécie de cessão fiduciária de direitos sobre coisas/bens móveis e títulos de crédito e subespécie de negócio fiduciário.
6. Negócio fiduciário[14]
“Na teoria do negócio fiduciário”, observa Judith H. Martins Costa, “tudo é discutível, sua admissibilidade e sua estrutura, as suas relações com os negócios indiretos, e os simulados, ou ainda a fraude, razão possuindo De Martini ao sublinhar a ‘desordem conceitual’ que, nessa matéria, é imperante, em razão do que se poderia chamar de ‘poliedricidade da fidúcia’”[15].
7. Espécies e subespécie de negócio fiduciário
São espécies de negócio fiduciário[16]: (a) a alienação fiduciária em garantia de coisa fungível[17]; (b) a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel[18]; (c) a propriedade fiduciária de coisa móvel infungível[19]; (d) a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel[20]; (e) a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais[21]; (f) a cessão fiduciária de direitos decorrentes de contratos de alienação de imóveis[22] e (g) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas/bens móveis e títulos de crédito[23].
É subespécie de negócio fiduciário e espécie de cessão fiduciária de direitos sobre coisas/bens móveis e títulos de crédito[24] a cessão fiduciária de direitos creditórios.
8. Noção de antecipação de recebíveis [25]
Antecipação de recebíveisé a transmissão voluntária[26] da propriedade fiduciária[27] de recebíveis performados e não performados[28] da fiduciante para o fiduciário, sob condição resolutiva[29] e em caráter temporário e limitado,[30] oriundos de negócios jurídicos ou de contratos de prestação de serviços.
9. Pluralidade de negócios jurídicos
Apregoa-se que a tipologia contratual, criada, ordenada e desenvolvida pelo direito romano, permanece quase inalterada, não obstante o direito precise e deva evoluir, para satisfazer os anseios e as necessidades do cotidiano do homem.
O ordenamento jurídico, muitas vezes, nem através de contratos típicos, nem atípicos, atende aos propósitos das partes, o que as obriga a realizarem avenças múltiplas, a entrelaçarem pactos nominados e inominados, o que enseja uma “pluralidade de negócios jurídicos ou de contratos”[31].
Esses negócios jurídicos, típicos e atípicos, nominados e inominados, vinculados por uma causa comum e dirigidos a uma única finalidade, são estudados pela doutrina pátria e alienígena quando trata da classificação do negócio jurídico pelo critério de sua composição estrutural.
O negócio jurídico, classificado pelo critério de sua composição estrutural, pode ser simples, complexo e coligado: o negócio jurídico considera-se (a) simples quando deriva de um ato unitário, de um ato único, a despeito da pluralidade de partes; (b) complexo quando vários contratos são acessórios, subordinados, dependentes de outros[32], e (c) coligados quando há dois ou mais negócios conexos, todos destinados à obtenção do mesmo resultado.
Orlando Gomes, ao escrever sobre os negócios coligados, calcado em Betti, pontifica: “Conforme se constituam por ato único ou resultem da fusão de vários atos sem eficácia independente, os negócios jurídicos são simples ou complexos. (…) se a cada declaração se seguem, como próprias e independentes, os efeitos jurídicos correspondentes à sua finalidade, têm-se vários negócios coligados. (…) dois negócios coligados conservam a fisionomia própria, produzem seus efeitos específicos, embora, entre eles, exista nexo que os une substancialmente.” [33]
Após distinguir o negócio fiduciário dos negócios simulado e indireto e realçar que naquele há, a um só tempo, um negócio translativo (transferência do domínio em caráter precário e resolúvel) e um negócio obrigacional (a obrigação do fiduciário de restituir a coisa à fiduciante), Orlando Gomes declara que, no negócio fiduciário, “podem ser objeto da transmissão tanto a propriedade como os direitos de crédito.”[34]
Na antecipação de recebíveis, há uma pluralidade de negócios jurídicos, por exemplo: a compra e venda de coisas móveis, a abertura de crédito ou o mútuo feneratício e a antecipação de recebíveis, sendo diferentes, em cada um deles, o objeto da obrigação e o objeto da prestação.
10. Objeto da obrigação e objeto da prestação no contrato de compra e venda e no de prestação de serviços [35]
O objeto da obrigação é a prestação, o ato humano, a ação positiva, [36] v.g., na compra e venda, o vendedor entrega coisa certa ou incerta, específica ou genérica,[37] ao comprador; na prestação de serviços, a realização de um serviço[38], v.g., o prestador do serviço conclui a obra e a entrega ao cliente.
O objeto da prestação é o bem que deve ser entregue – a coisa que se transfere -, ou o serviço a ser prestado – o trabalho que o devedor se comprometeu a realizar -.
É a doutrina dos consagrados mestres Pontes de Miranda, Orlando Gomes Caio Mário da Silva Pereira e Roberto de Ruggiero.
Em seu inigualável “Tratado de Direito Privado”, ao discorrer sobre o “Objeto da Prestação”, Pontes de Miranda elucida: “… objeto da prestação é o ato no que há de satisfazer (o dar isso ou aquilo, o fazer isso ou aquilo, o não fazer isso ou aquilo). (…) “Então se percebe que, ainda nas obrigações de dar coisas corpóreas, como o prédio, o livro, ou o relógio, o objeto não é propriamente o prédio, o livro, ou o relógio, mas a dação do prédio, do livro, ou do relógio.” [39] (grifo do original)
Orlando Gomes, ao lecionar sobre a “estrutura da obrigação”, adverte: “Para dissipar dúvidas, deve-se distinguir, na relação (obrigacional), o objeto imediato do objeto mediato, ou, por outras palavras, o objeto da obrigação do objeto da prestação.” (grifo do original)
E prossegue: “O objeto imediato da obrigação é a prestação, a atividade do devedor destinada a satisfazer o interesse do credor. Objeto mediato, o bem ou o serviço a ser prestado, a coisa que se dá ou o ato que se pratica. O objeto da obrigação específica de um comodatário é o ato de restituição da coisa ao comodante. O objeto dessa prestação é a coisa emprestada, seja um livro, uma joia, ou um relógio. Costuma-se confundir o objeto da obrigação com o objeto da prestação … Tecnicamente são coisas distintas.”[40] (grifo do original)
Por último, categoricamente afirma: “A ação, ou a omissão, do devedor chama-se prestação, que é, com efeito, o objeto da obrigação.”[41] (grifo do original)
Caio Mário da Silva Pereira ensina: “Toda obrigação há de ter um objeto, que é a prestação do devedor. Não é de confundir-se o objeto da obrigação com a coisa em que a prestação se especializa, e seria errôneo dizer que o objeto da obrigação decorrente de um título cambial seria o dinheiro expresso no mesmo.”[42]
Roberto de Ruggiero, em suas “Instituições de Direito Civil”, parágrafo 92, que tem por título “Objeto das obrigações: a prestação”, doutrina: “(…) qualquer forma de atividade humana pode constituir objeto da obrigação. Esta não tem, porém, como objeto, como muitos dizem e às vezes mesmo o próprio legislador, a coisa a que a prestação se refere, mas a própria prestação, isto é, um ato positivo ou negativo do devedor, que, como dar ou fazer, pode ter por seu turno como objeto a próprio coisa.”[43] (grifo do original)
11. Objeto da obrigação e objeto da prestação na antecipação de recebíveis
Na antecipação de recebíveis, o objeto da obrigação é a prestação, o ato, a ação positiva do devedor de ceder recebíveis de determinado valor, discriminados, ou não, no respectivo contrato, ou em documento apartado, ou em lançamento eletrônico.
O objeto da prestação são os direitos creditórios[44] (bens incorpóreos[45]) e os títulos de crédito[46], “originários de operações realizadas em qualquer segmento econômico”[47].
Por isso e muito mais, assiste razão ao e. Min. Marco Aurélio Bellizze, da Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp. nº 1.797.196 (2.017/0238573-1), j. 09/04/2.019, DJe. 12/04/2.019, quando, em seu primoroso voto, distinguiu o objeto da antecipação de recebíveis e o título, que o representa: “O objeto da cessão fiduciária é o crédito propriamente dito (…) e não o título que o representa; a garantia da cédula de crédito bancário, por expressa disposição legal, pode ser constituída por crédito futuro (a performar)”. [48]
“Saliente-se, a título de exemplo, ser dado ao empresário ceder, em garantia fiduciária a um empréstimo bancário por ele tomado, os créditos advindos de uma futura venda comercial a ser realizada com um de seus clientes (corporificada em uma duplicata), os quais ingressarão, a esse título (em garantia fiduciária), na conta vinculada do banco fiduciário.”
“Veja-se, assim, que “os recebíveis”, objeto da cessão fiduciária, devidamente especificados no contrato, podem se referir a créditos já constituídos (performados) ou a créditos futuros (a performar), na medida em que o negócio jurídico, para sua validade, deve ostentar objeto lícito, possível e determinado ou passível de determinação, nos termos do art. 100, II, do Código Civil.”
12. Recebíveis performados
Entende-se por recebíveis performados os “direitos e títulos representativos de crédito, originários de operações realizadas em qualquer segmento econômico” (cf. art. 2º, IV, da RCVM nº 60/2.021), cujo objeto foi entregue ou o serviço foi prestado.
O art. 7º, § 2º, do Anexo Normativo II, da RCVM nº. 60/2.001, ao tratar da emissão de CRAs, reza: “Por créditos performados, (…) entende-se aqueles em que o produto objeto da compra e venda já tenha sido entregue ou em que a prestação de serviço já tenha ocorrido”.
O art. 4º, par. único, I, do Anexo Normativo I, da citada RCVM nº. 60/2.001, ao dispor sobre a emissão de CRIs, esclarece que performados são os créditos que não dependem da ocorrência de qualquer fato futuro.
Eis um exemplo corriqueiro de antecipação de recebíveis performados: na compra e venda mercantil realizada com uma empresa varejista, o cliente escolhe o produto, dirige-se ao caixa, paga o preço à vista ou parcelado e, entregue o produto, sai com ele; se o pagamento tiver sido através de cartão de crédito para liquidação em parcelas, a varejista pode negociar os carnês/parcelas/faturas do cartão de crédito, rectius, osrecebíveis performados e antecipar o recebimento.
13. Recebíveis não performados
Entende-se por recebíveis não performados os créditos decorrentes de negócio jurídico cujo bem, objeto do contrato, não foi entregue, ou cujo serviço não foi prestado.
No plano legislativo, há, pelo menos, duas leis – Leis nºs. 10.931/2.004 e 8.987/1.995, atualizada pela Lei nº. 11.196/2.005 -, e no plano administrativo, duas instruções da CVM – ICVM nº 356/2.001 e ICVM nº 444/2.006 -, que se referem a “créditos não performados”, a “créditos futuros”, “créditos a performar”.
Confira-se.
Ao regular a emissão de cédula de crédito bancário e discriminar os bens que podem servir de garantia da operação, a Lei no. 10.931/2.004, no art. 31, elenca, entre os bens patrimoniais, os bens presentes e futuros: “A garantia da Cédula de Crédito Bancário poderá ser fidejussória ou real, neste último caso constituída por bem patrimonial de qualquer espécie, disponível e alienável, móvel ou imóvel, material ou imaterial, presente ou futuro, fungível ou infungível, consumível ou não, cuja titularidade pertença ao próprio emitente ou a terceiro garantidor da obrigação principal.”
A Lei Geral das Concessões de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/1.995, art. 28-A, incluído pela Lei 11.196/2.005), ao referir-se a créditos operacionais futuros, estabelece: “Para garantir contratos de mútuo de longo prazo, destinados a investimentos relacionados a contratos de concessão, em qualquer de suas modalidades, as concessionárias poderão ceder ao mutuante, em caráter fiduciário, parcela de seus créditos operacionais futuros (…)”; III – os créditos futuros cedidos nos termos deste artigo serão constituídos sob a titularidade do mutuante, independentemente de qualquer formalidade adicional.”
A ICMV nº 356/2.001, que “dispõe sobre o funcionamento de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios Padronizados (FIDC)”, diz: “Art. 40º, § 8º. As aplicações do fundo em warrants e em contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e/ou serviços para entrega ou prestação futura (…).”
A ICMV nº 444/2.006, que “dispõe sobre o funcionamento de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios Não-Padronizados (FIDC-NP)”, esclarece: Art. 1º, § 1º: “Para efeito do disposto nesta Instrução, considera-se Não-Padronizado o FIDC cuja política de investimento permita a realização de aplicações, em quaisquer percentuais de seu patrimônio líquido, em direitos creditórios: VI – de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas.”
Essas instruções serão revogadas em 02/10/2.023, ao entrar em vigor a RCVM nº 175/2.022, que também prevê a validade e eficácia de “direitos creditórios (recebíveis) não performados”, originários de “contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e serviços para entrega ou prestação futura”.
O art. 2º, do Anexo Normativo II, da RCVM nº 60/2.001, dispõe: “Para os fins deste Anexo Normativo, entende-se por (…) XVII – lastro dos direitos creditórios: documentação necessária para o exercício das prerrogativas decorrentes da titularidade dos ativos, e capaz de comprovar a origem, a existência e a exigibilidade do direito creditório, sem prejuízo das hipóteses de aquisição de direitos creditórios não-performados”.
O art. 13 estabelece: “A distribuição de cotas junto ao público em geral requer o cumprimento, cumulativo, dos seguintes requisitos: IV – a política de investimento não admita a aplicação em: a) direitos creditórios que sejam originados por contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e serviços para entrega ou prestação futura.”
Eis um marcante exemplo de antecipação de recebíveis não performados, extraído da prática bancária: um pool de 15 (quinze) bancos e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) celebraram um “contrato de abertura de linha de crédito” não rotativo e não renovável com a finalidade de enfrentar “os impactos financeiros no setor elétrico decorrentes da situação de escassez hídrica” no valor de mais de R$ 5.5 bilhões (cinco bilhões e quinhentos milhões de reais), obrigando-se a devedora a “emitir eletronicamente cédula(s) de crédito bancário equivalente ao Valor da Linha de Crédito”, lastreada em diversas garantias (cl. XIII. Garantias) com destaque para a “cessão fiduciária dos direitos creditórios futuros da CCEE, representados pelos Boletos Operação a serem emitidos …” (cl.13.1. (d)) (grifo do original).
Eis outros casos marcantes de antecipação de recebíveis não performados, ou futuros: em operações de antecipação de recebíveis, a Companhia Brasiliana de Energia deu em garantia “direitos creditórios sobre fluxo de dividendos e de juros de capital próprio”; a Ecorodovias Concessões e Serviços também cedeu “direitos provenientes de dividendos no contexto de sua emissão de debêntures”; a TPI – Triunfo Participações e Investimentos S.A. cedeu em garantia “direitos provenientes de eventual indenização do poder concedente nos contratos de concessão (…) de dividendos, juros de capital próprio e quaisquer distribuições declaradas ou pagas e (…) da totalidade dos direitos creditórios atuais e futuros provenientes de recebíveis (…).”[49]
14. Vantagens econômicas e competitivas da antecipação de recebíveis
Toda e qualquer operação industrial, comercial, financeira, imobiliária, hipotecária, arrendamento mercantil, agrícola, de prestação onerosa de serviços etc. – para pagamento a prazo – gera créditos, direitos creditórios, recebíveis, negociáveis no sistema de organização da produção, distribuição e consumo, através de uma instituição financeira e não financeira.
Esses créditos, enquanto permanecerem contabilizados no ativo circulante ou não circulante da empresa – contas a receber -, somente servem para melhorar o seu rating e facilitar a pactuação de contratos com fornecedores de bens, serviços, empréstimos e financiamentos.
Isso, contudo, não basta.
Não basta que o balanço e as demonstrações financeiras tornem pública a existência de direitos creditórios, que poderão vir a ser convertidos – no futuro – em dinheiro.
Não basta possuir ativos realizáveis no congelador: para quem quer, antes de tudo, manter-se viva e, depois e sempre, expandir-se, é necessário transformar créditos atuais ou futuros em ativos líquidos, em ativos disponíveis – em dinheiro novo e rápido e barato e constante -, que serão depositados em uma conta corrente de livre movimentação ou em uma conta vinculada, ou scrow account.
Um dos instrumentos mais simples e eficazes para tornar líquido o ativo representado por créditos é a antecipação de recebíveis, porque ela gera vantagens econômicas e vantagens competitivas para quem dela se vale.
São vantagens econômicas: os recebíveis permitem que as pequenas, médias e grandes empresas (a) os convertam em recursos financeiros líquidos com rapidez (sem a tirania do aparelho burocrático), por vezes sem garantias (pessoais ou reais, do devedor ou de terceiros, dependo do seu risco de crédito) e a custos reduzidos (menores taxas de juros e despesas); (b) estruturem o caixa, dinamizem o capital de giro e melhorem os indicadores de liquidez; (c) se tornem mais eficientes e prósperas etc.
E vantagens competitivas: com dinheiro em conta corrente e aplicações financeiras disponíveis, as empresas têm possibilidade de (a) negociar, com êxito, condições diferenciadas com fornecedores de bens e serviços e instituições bancárias e não financeiras; (b) rivalizar com as concorrentes; (c) enfrentar a ameaça de produtos substitutos; (d) vender bens ou prestar serviços a custos menores; (e) produzir e/ou vender produtos diferenciados etc.
15 – Fato incontestável: a antecipação de recebíveis futuros contribui decisivamente para o sucesso das pequenas, médias e grandes empresas
Eis alguns exemplos de operações creditícias com lastro em recebíveis não performados, realizadas diariamente, realizadas milhares de vezes, realizadas em todos os cantos do país: (a) compra de um automóvel a fabricar para pagamento a prazo: escolhida a marca, o modelo, o ano de fabricação, a cor etc., e acordado o preço, o comprador irá receber não o automóvel que ele viu no prospecto, não determinado automóvel, em que se conhece a especificação dos números do motor e do chassis, porém um com as características que constavam do prospecto e do recibo de sinal, para formalizar a compra; (b) compra de um imóvel na planta, ou sequer na planta, cuja identificação da unidade se limita ao local, ao andar e ao número; (c) compra de uma lancha, para ser entregue dentro de determinado prazo, que é identificada exclusivamente pelo nome do fabricante e o modelo.
E mais: (a) compra (i) de um bem negociado pela internet em uma plataforma de compras – portanto, para entrega futura, muitas vezes sem data certa para chegar ao destino -, (ii) de qualquer bem que não foi produzido, ou ainda está em produção, ou em uma aquisição através de uma ordem de compra, em que são especificadas a espécie, a quantidade e qualidade do bem, além de outros dados (v.g., nome e qualificação do comprador, data da compra, valor da venda, condições de pagamento, prazo de entrega etc.); (b) prestação de serviços em data futura previamente aprazada, cujos pagamentos das parcelas são realizados em etapas de acordo com o cronograma das obras etc.
O project finance é o paradigma da antecipação de recebíveis não performados.
O project finance éum tipo de financiamento destinado a empreendimentos de grande porte, v.g., obras e construções de infraestrutura de energia elétrica, saneamento, energia, transportes (Eurotúnel); construção e ampliação de portos, aeroportos e rodovias etc.
O pagamento da dívida começa a partir da fase operacional, é realizado a longo prazo por meio dos fluxos de caixa futuros do próprio projeto e se caracteriza pela transferência do risco de crédito para uma SPE e pela redução do nível de endividamento da empreendedora.
Essa e todas as incontáveis hipóteses de antecipação de recebíveis, – que beneficiam, direta e indiretamente, empresas, empregados, prestadores de serviços, credores, consumidores, municípios, estados e a União Federal, a coletividade -, deveriam induzir/estimular/compelir a elaboração, discussão, votação, promulgação, sanção e publicação de lei sobre essa matéria de sumo interesse econômico e social em regime de urgência urgentíssima.
À míngua de norma legal clara e precisa que preveja a inclusão ou a exclusão da antecipação de recebíveis no processo de recuperação judicial da cedente-fiduciante, os tribunais de Justiça e o e. STJ continuarão a ser chamados, dia após dia, ininterruptamente, a decidir este caso difícil[50], este caso controvertido[51], este direito controvertido.[52]
16 – Casos difíceis: direito incompleto, ou lacuna da lei, eobscuridade da lei
Richard A. Posner, ao discorrer sobre a interpretação das leis, assevera: “(…) os juízes norte-americanos veem-se frequentemente na posição do comandante do pelotão de meu exemplo. Os comandos do poder legislativo são pouco claros, e os juízes não podem pedir aos legisladores que os esclareçam.”[53] (…) “não é incomum que as leis escritas contenham erros tipográficos ou lógicos inexplicáveis. A redação das leis é frequentemente um processo apressado e pouco cuidadoso”[54],ministrando dois exemplos “para mostrar a profundidade do problema da interpretação das leis indeterminadas.”[55]
São casos difíceis aqueles em que não há norma aplicável para dirimir a controvérsia, aqueles em que se verifica uma lacuna da lei, ou, nas palavras Hart: “(…) o direito é, nesses casos, fundamentalmente incompleto: não oferece nenhuma resposta aos problemas em pauta. Estes não são regulamentados juridicamente; e, para chegarem a uma decisão em tais casos, os tribunais precisam exercer a função legislativa limitada que denomino ‘discricionariedade.”[56] (grifo do original)
São também casos difíceis aqueles em que a lei é obscura, quer em virtude da linguagem ambígua, polissêmica, abstrata, quer em virtude de sua “textura aberta”[57] (artigos de lei redigidos sob a forma de conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais).
São casos difíceis, para Ronald Dworkin, aqueles em que “o direito não tem nenhuma resposta”[58],em que “nenhuma regra estabelecida dita uma decisão em qualquer direção”[59], e aqueles em que as regras, ao invés de serem “bastantes precisas”, (…) “assumem a forma daquilo que frequentemente se chama de padrões ‘vagos’ (…), ‘clausulas vagas.’”[60]
Nos casos de lacuna ou obscuridade da lei, para Hart, o juiz deve agir com discricionariedade, inclusive com apoio em valores morais; para Dworkin, o juiz deve empreender uma interpretação sistemática, integrativa e construtiva com respaldo nos princípios e regras do ordenamento jurídico, sob pena de violação do princípio da legalidade e da cláusula pétrea da separação dos poderes, porquanto, frisa, não há lacunas na lei, nem obscuridades, nem o fato de o legislador ter usado linguagem vaga impede o magistrado de julgar.”[61]
17 – Casos difíceis que se transformam em casos contraditórios
Casos difíceis podem transformar- se em casos contraditórios, que são aqueles em que o juiz se depara com interpretações díspares, de autoria de juristas de nomeada, e decisões conflitantes, proferidas por insignes magistrados, todas muitíssimo bem fundamentadas.
Para desincumbir-se com louvor de sua nobre missão de julgar casos contraditórios, o juiz não pode desprezar os fatos, nem ignorar as consequências do seu julgamento, quer em relação aos litigantes, quer em relação à sociedade, nem deve ficar prisioneiro dos textos legais, mas sentir–se “(…) livre para ver, para além das normas, as considerações substantivas a elas subjacentes”, [62] e criar o direito.
Atente-se, contudo, que a criação do direito pelo juiz está sujeita a rigorosos limites, limites que restringem o seu poder de julgar, limites que coarctam suas escolhas, limites que o impedem de decidir arbitrariamente.
Eis a doutrina de Hart, consagrado titular da cátedra de filosofia do direito na Universidade de Oxford, sobre os estreitos limites do poder discricionário judicial: “É importante observar que o poder de criar o direito que atribuo aos juízes, para habilitá-los a regulamentar os casos em que o direito deixa parcialmente não regulamentados, é diferente daquele de um poder legislativo: não só os poderes do juiz estão sujeitos a muitas limitações que restringem sua escolha, limitações das quais o poder legislativo pode ser totalmente isento, mas também, como são exercidos apenas para decidir casos específicos, o juiz não pode utilizá-los para introduzir reformas amplas ou novos códigos legais. Assim, seus poderes são intersticiais, além de sujeitos a muitas restrições substantivas. Não obstante, haverá aspectos sobre os quais o direito existente não aponta nenhuma decisão correta; e, para julgar essas causas, o juiz tem de exercer seu poder de criar o direito. Mas não deve fazê-lo arbitrariamente.” [63] (grifo do original).
Por conseguinte, quando há discordância de opiniões e incompatibilidade de julgados, como in casu, o juiz deve deter-se na observação dos atos e fatos – e de suas consequências – e está livre para criar o direito com o auxílio da teoria do pragmatismo jurídico.
18 – Pragmatismo jurídico
O pragmatismo jurídico combate as ideias metafísicas dos jusnaturalistas e o formalismo dos juspositivistas, baseia-se no conceito empírico e materialista da realidade, vale-se dos princípios da observação e verificação e prega que o juiz deve ter em mente, quando do julgamento do caso concreto, os efeitos imediatos e mediatos que a sua decisão vai gerar a respeito de fatos e atos de natureza política, jurídica, econômica, financeira e social, isto é, o juiz, ao julgar a lide, deve considerar, com absoluta prioridade, o que Alf Ross designa por “razoabilidade prática do resultado”.
Ross afirma que, para boa aplicação da legislação, é mister eliminar os apriorismos racionalistas ou axiomáticos, criados pelos idealistas (o direito faz parte essencial do mundo das ideias), eis que o direito é simplesmente um inquestionável fato social, que só pode ser entendido através de critérios empíricos, jamais com o recurso a princípios apriorísticos morais, racionais ou ideológicos.[64]
Quanto à prestação jurisdicional, Ross assinala: “Os fatores pragmáticos na administração da justiça são considerações baseadas numa valoração da razoabilidade prática do resultado apreciado em relação a certas valorações fundamentais pressupostas. Os fatores pragmáticos são colocados aqui em contraste com os fatores puramente linguísticos.” [65]
Por que o preclaro doutor em filosofia da Universidade de Uppsala faz essa peremptória afirmação?
A resposta se encontra no seu admirável“Hacia una ciencia realista del derecho – critica del dualismo en el derecho”: “(…) el derecho es concebido al mismo tiempo como un fenómeno susceptible de observación en el mundo de los hechos, y como una norma obligatoria en el de la moral o de los valores; al mesmo tiempo como algo físico y metafísico, como empírico y a priori, como real y como ideal, como algo que existe y algo que vale, como un fenómeno y como una proposición.”[66]
Richard A. Posner, expoente da Universidade de Chicago, a seu turno e com igual convicção, critica os formalistas (jusnaturalistas e positivistas) por insistirem – contra todas as evidências de ontem e de hoje – que o direito é um sistema homogêneo, completo e autônomo de ideias, fundamentalmente um “conceito ou um grupo de conceitos”. (…) “Enfatizei as dificuldades, no contexto forense, da análise tanto factual quanto jurídica, e observei que frequentemente o sistema jurídico se decide pela exatidão ‘formal’, e não pela ‘material.’”[67] (grifo do original)
Posner considera o direito uma atividade que visa à tomada de decisões, razão pela qual se deve, na prática jurídica, adotar uma concepção pragmatista, eis que ela “representa uma rejeição progressivamente mais enfática de dualismos iluministas como sujeito e objeto, mente e corpo, percepção e realidade, forma e substância.” [68] (…) “o pragmatismo significa olhar para os problemas concretamente, sem ilusões, com plena consciência das limitações da razão humana.”[69]
Em outra obra de filosofia do direito – “Para além do direito” –,ao analisar “a abordagem pragmática”, Richard Posner discorre: “Não há um conceito canônico de pragmatismo. Defino-o, para começar, como uma abordagem prática e instrumental, e não essencialista: interessa-se por aquilo que funciona e é útil, e não por aquilo que ‘realmente’ é. Portanto, olha para a frente e valoriza a continuidade com o passado somente na medida que essa continuidade seja capaz de ajudar-nos a lidar com os problemas do presente e do futuro.”[70] (grifo do original)
E acrescenta: “A atitude pragmática é ativista (…) uma filosofia de ação e de aperfeiçoamento, embora isso não signifique que o juiz pragmatista seja necessariamente um ativista[71] (…) Por ser antimetafísico e antidogmático, o pragmatista vê as teorias científicas como ferramentas (…), sua fonte de inspiração é cientista experimental.”[72] (grifo do original)
Destaque-se, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal adotou, mais de uma vez, o pragmatismo jurídico para resolver um caso difícil, v.g., descriminalização do aborto, união homoafetiva, registro civil para transgêneros, equiparação entre injúria racial e racismo, porte de maconha, lei da ficha limpa.
Também assim o fizeram os Poderes Legislativo e Executivo: a LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com os acréscimos da Lei nº 13.655, de 2.018, determina que o juiz, ao sentenciar com base em valores abstratos, avalie as consequências práticas da decisão (art. 20); na fundamentação, deve demonstrar a necessidade e adequação da medida imposta (par. único do art. 20), sob pena de nulidade por falta de motivação (CF, arts. 93, IX, c/c. CPC, 11 e 489, § 1º, II).
19. Objeções à exclusão da antecipação de recebíveis dos efeitos da recuperação judicial da fiduciante
Primeira: Antes e acima de tudo a LFRE objetiva a preservação da empresa econômica e financeiramente viável.
Ao se distinguir o objeto da recuperação judicial dos seus fins e ponderar os princípios inspiradores da lei, chegar-se-á à inelutável conclusão de que a LFRE não visa proteger e beneficiar apenas e tão somente a devedora-fiduciante, sobrelevando notar, de pronto, que as três finalidades são cumulativas e não alternativas.
Foi o que sustentei na 1ª. edição (2.006) e reiterei na 6ª. edição (2.016) dos Comentários à LFREe reafirmo agora, porquanto, na induvidosa dicção do art. 47, a LFRE “tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo a atividade econômica”.
Eis o que escrevi:
“8. Objeto: A recuperação judicial tem por objeto sanear o estado de crise econômico-financeira do empresário e da sociedade empresária.”
“9. Finalidades: A recuperação judicial tem por finalidades imediatas a preservação dos negócios sociais, a continuidade do emprego e a satisfação dos direitos e interesses dos credores; por finalidades mediatas, estimular a atividade empresarial, o trabalho humano e a economia creditícia.”
“10. Princípios: A recuperação judicial baseia-se nos princípios da conservação e função social da empresa, da dignidade da pessoa humana e valorização do trabalho e da segurança jurídica e efetividade do direito.”
“11. Ponderação de fins e de princípios: Juridicamente, ponderação — de bens, de valores, de interesses, de fins ou finalidades, de princípios — significa “atribuir pesos a elementos que se entrelaçam” com o escopo de “solucionar conflitos normativos”, sendo certo que “a solução do conflito terá de ser casuística” e estará “condicionada pelas alternativas pragmáticas para o equacionamento do problema.” [73]
“No caso da recuperação judicial, a assembleia geral de credores e o juiz da causa deverão entregar-se à ponderação de fins — salvar a empresa, manter os empregos e garantir os créditos — com apoio no princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, cientes que os processos concursais são “procedimentos de sacrifício, que limitam os poderes do devedor e restringem os direitos dos credores.”
“Deverão, ao mesmo tempo, empenhar-se na ponderação de princípios — o da conservação e função social da empresa, o da dignidade da pessoa humana e valorização do trabalho e o da segurança jurídica e efetividade do Direito —, por meio do teorema da colisão de Alexy, para o qual, diante de um choque de princípios, as circunstâncias fáticas determinarão qual deve prevalecer, pois ‘possuem uma dimensão de peso’, verificável caso a caso.’” [74]
Por fim, elaborei um quadro sinótico da ponderação de fins e de princípios:
Segunda: a questão muito bem aflorada e muitíssimo bem defendida pelo e. Des. Grava Brazil, da c. Segunda CRDE-TJSP, ao relatar o Ag.Inst. nº 2193987-06.2019.8.26.0000, reg. 23/06/2.020, verbis: “Com efeito, a cessão fiduciária de créditos futuros se sujeita ao regime jurídico análogo ao da compra e venda de coisa futura. Não existe propriedade sobre algo que ainda não existe. A propriedade somente se constitui a partir do momento em que seu objeto passa a existir.” (Item 3. supra)
Ao dissertar sobre a pluralidade de negócios jurídicos (itens 9 e segs. supra), procurei demonstrar que o objeto da obrigação na antecipação de recebíveis é a prestação, o ato, a ação positiva do devedor de ceder recebíveis de determinado valor; o objeto da prestação são os direitos creditórios, os créditos (bens incorpóreos) e os títulos de crédito, originários de operações realizadas em qualquer segmento do mercado.
Os créditos futuros, ou a performar, ou não performados, objeto da prestação da antecipação de recebíveis, tal qual o objeto do contrato de compra e venda, podem ser coisas (bens) atuais ou futuras, ficando “sem efeito o contrato se estas não vierem a existir”, conforme taxativamente dispõe o art. 483 do Código Civil.
Terceira: os créditos futuros estão submetidos aos efeitos da LFRE porque, “à luz do que dispõe o art. 49, caput, do mesmo diploma legal, a existência da propriedade fiduciária deve ser aferida na data do pedido de recuperação. Retenções relativas aos créditos a performar, ou seja, recebíveis constituídos posteriormente à distribuição da recuperação que devem ser integralmente liberados à devedora”. (transcrição de parte do v. acórdão da c. Segunda CRDE-TJSP) (item 3 supra).
Pelo contrato de cessão fiduciária, a fiduciante transmite o domínio e a posse direta dos recebíveis performados e o domínio dos não performados para o fiduciário, passando, desde então, o “fiduciário a ser dono dos bens transferidos de modo restrito e resolúvel”[75], razão pela qual, na data da distribuição do pedido de recuperação judicial, os créditos cedidos – todos – pertencem ao fiduciário, e, por conseguinte, não podem estar sujeitos aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante.
Aos argumentos de ordem legal a favor da exclusão dos recebíveis performados e a performar dos efeitos da recuperação judicial da fiduciante, acrescente-se o exercício do poder discricionário judicial na solução deste caso controvertido.
20. A discricionariedade judicial na antecipação de recebíveis
Diante do fato de o emprego dos elementos, meios, métodos, processos de interpretação da lei – gramatical, lógico, sistemático e finalístico – não ter logrado extinguir a controvérsia, o que deve o juiz fazer, como deve agir?
O juiz deve agir com judiciosa discricionariedade e fazer uso esclarecido do “critério pragmatista das consequências práticas” com a finalidade de manter intocadas as vantagens econômicas e competitivas discriminadas no item 15 supra.
Submeter à recuperação judicial os recebíveis performados e não performados, cedidos pela fiduciante ao fiduciário, acarretará sérias e imediatas consequências para ambas as partes, o mercado e a sociedade, v.g., vai encarecer as operações com recebíveis (taxas de juros mais altas), retardá-las (a avaliação dos riscos será trabalhosa e dispendiosa), restringi-las (a concessão de empréstimos e financiamentos será extremante seletivo, eis que, como sabido, o banco é avesso ao risco), aumentar o spread (devido ao risco de crédito e à diminuição do número de negócios, que reduz o ganho em escala do fiduciário) etc.
O devedor, na recuperação, ganha, ao fazer caixa, ao ter o seu ativo circulante acrescido de valores inexistentes na sua contabilidade na data do pedido de recuperação; porém, frise-se, que, quando em pleno funcionamento, o devedor perde, porque o fiduciário, ciente de que se submeterá aos efeitos da recuperação da fiduciante, elevará a taxa de juros e o prêmio de risco: elevada a taxa de juros e o prêmio de risco, a fiduciante terá dificuldades para obter capital de giro, manter o negócio funcionando (por falta de caixa), honrar suas dívidas com fornecedores de bens e serviços e instituições financeiras e não financeiras, adquirir matéria prima/produtos à vista, ou com abatimento, ou em mais longo prazo etc.
Incluído na recuperação judicial, o fiduciário perde: quando faz o desembolso, porque, ao invés do pagamento dos recebíveis ser destinado a amortizar/liquidar o empréstimo/financiamento, irá “encher” os cofres da recuperanda; quando é compelido a participar da recuperação e receber – talvez – na forma do plano de recuperação judicial, inexoravelmente prejudicial aos credores devido aos deságios, carências, forma e prazos de pagamento etc.
O mercado perde – não só o mercado de capitais, mas toda a cadeia produtiva e os consumidores – porque a obtenção de recursos financeiros se tornará mais onerosa, demorada, seletiva.
Perderiam, hoje, mais de 2,1 milhões de empresas ativas para beneficiar cerca de 3,8 milhões, que se encontravam em recuperação em junho deste ano (2.023), segundo a manchete do Valor, ed. 5.824, onde se lê: “Brasil tinha 3,8 mil companhias em recuperação judicial no 1º. semestre”.
Ao comentar o perigo de a lei priorizar os interesses dos devedores, Richard Posner vale-se de um exemplo macabro: “(…) concessão de mais direitos aos devedores em caso de falência, longe de provocar uma avalanche de tomadas de empréstimo irresponsáveis, poderia reduzir a quantidade de empréstimos e, consequentemente, a incidência das falências, pois levaria os credores a emprestar quantias menores a devedores de risco. Portanto, os credores podem se opor à flexibilização das regras de falência por temerem não o aumento da inadimplência, mas a redução do volume dos empréstimos. (Imagine quão poucos empréstimos haveria se os tomadores não tivessem nenhuma obrigação de reembolsar os credores.) Note-se também que tanto as regras de falência excessivamente rígidas quanto aquelas excessivamente lenientes prejudicam os credores: se, a exemplo do que acontecia na Roma antiga, a lei determinasse que o devedor inadimplente poderia ser esquartejado em tantas partes quantos fossem os seus credores, o índice de inadimplência de empréstimos seria muito baixo. Em compensação, a maioria das pessoas teria medo de tomar dinheiro emprestado. Entende-se assim por que os agiotas quebram as pernas do devedor inadimplente, mas não o matam.”[76]
Por derradeiro, recorde-se a lição de Fernand Derrida, professor honorário na Faculdade de Direito da Universidade de Alger, e Jean-Pierre Sortais, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lausanne e diretor do Instituto de Direito Francês: “7. Pouvoir du tribunal.- La loi de 1985 au fait du tribunal le grand maître de la procédure nouvelle. Certes, le dirigisme judiciaire était déjà perceptible sous les réformes de 1.967 (…) , où le tribunal était investi de pouvoirs nouveaux lui permettant de prendre des décisions de nature économique. Aussi, dès cette époque, avait-on pu se reférer à une magistrature économique.” [77]
* * *
Em suma: ciente da experiência exitosa e da importância da antecipação de recebíveis para o mercado de bens e serviços e o mercado financeiro e de capitais; consciente dos efeitos econômicos e sociais que a sua sentença produzirá, atento à advertência de Willian Lazier – as empresas morrem de falta de caixa -, o juiz deve decidir que a antecipação de recebíveis performados e a performar não se submete aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante.
* Mestre em Direito Empresarial pela UFRJ e doutor e livre-docente em Direito Comercial pela UERJ. Colaboraram na pesquisa e transcrições deste artigo os Drs. Antonio de Faria Guimarães e Berliet Rodrigues Monteiro Filho e o estagiário João Felipe Pinto Bandeira de Mello.
[1] Professor de Negócios, Emérito, na Stanford University’s Law Scholl, apud, Jim Collins, in Como as gigantes caem, Campus-Élsevier, 2.010, p.82.
[2] Para simplificar a exposição do tema, não incluo o desconto bancário, pois há antiga discussão se se trata de uma venda de cheques, duplicatas, do cliente para o banco ou de um empréstimo garantido por títulos de crédito, nem a faturização, porque apenas a convencional é cessão de crédito; a maturity factoring, mera cobrança mediante o pagamento de uma comissão.
[3] Hart, O conceito de direito, Martins Fontes, 2.018, p. 326.
[4] Na esteira do ensinamento de Robert Alexy, “la ciencia del derecho, tal como es cultivada en la actualidad, es, ante todo, una disciplina práctica”, in Teoria de los derecho fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, 1ª., p. 33.
[5] Hart, ob. cit., p. 351 e segs.
[6] Richard A. Posner, Para além do direito, Martins Fontes, p. 419 e 422.
[7] Richard A. Posner, ob. cit., p. 422.
[8] “Art. 47 – A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
[9] Disp. em https://www.fortes.adv.br/2023/03/13/tratamento-da-cessao-fiduciaria-de-recebiveis-a-performar-e-a-recuperacao-judicial-no-tjsp/. Ver também “Trava Bancária” em Recuperação Judicial – Efetividade ou Flexibilização da Garantia das Instituições Financeiras na Contemporaneidade?, Cláudia Ribeiro Pereira Nunes, disp. www.publicadireito.com.br
[10] Recuperação judicial e a excepcionalidade dos créditos garantidos por cessão fiduciária de créditos futuros, in Ricardo Lupion Garcia (Oreg), 10 anos da lei de falências e recuperação judicial de empresas: inovações, desafios e perspectivas, Porto Alegre, Ed. Fi, 2.016, p. 171-178.
[11] No Recurso Especial nº 1.797.196/SP (2.017/0238573-1), da Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 09/04/2.019, DJe. 12/04/2.019, tal qual no AgInt nos EDcl no AgInt no REsp nº 1.816.967/PR (2.019/0152954-5), j. 31/08/2.020, DJe. 08/09/2.020, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, também da Terceira Turma, a questão de fundo era decidir se “o título de crédito (duplicatas virtuais) se encontraria devidamente descrito no instrumento contratual”, assim como nos julgados pela e. Min. Nancy Andrighi.
[12] Os julgados mencionados no v. acórdão não decidiram se os créditos não performados sofrem os efeitos da LFRE, mas se é indispensável que haja menção específica da cada título de crédito encaminhado ao credor-fiduciário, ou, como consta do v. acórdão da Quarta Turma no AgInt. no REsp. nº 1.492.454/PR, Rel. Min. Raul Araújo, j. 21/11/2.019, DJe. 19/12/2.019, que “os títulos de crédito sejam descritos e caracterizados na carta, relação, borderô ou arquivo(s) eletrônico(s)”.
[13] AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1.816.967/PR (2.019/0152954-5), j. 31/08/2.020, DJe. 08/09/2.020.
[14] Ver meus artigos Cessão Fiduciária de Recebíveis, pub. no jornal Valor Econômico em 24/02/2.010, e Cessão Fiduciária de Recebíveis performados e a performar, pub. no livro 10 anos de vigência da LRFE, coord. Carlos Henrique Abrão, Nancy Andrighi e Sidney Beneti, Ed. Saraiva, 2.015, p.71 e segs.
[15] Os negócios fiduciários – Considerações sobre a possibilidade de acolhimento do “trust” no Direito Brasileiro, Revista dos Tribunais, vol. 657, p. 38.
[16] “A alienação fiduciária é efetivamente uma espécie do gênero negócio fiduciário, guardando os traços comuns deste. O devedor aliena a coisa sob a condição suspensiva de retorno ipso jure do domínio, mediante o pagamento da dívida assim garantida. E o credor investe-se temporariamente no domínio da coisa alienada em garantia fiduciária, sob condição resolutiva.” (Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe. Garantia Fiduciária: direito e ações: manual teórico e prático com jurisprudência, RTs, 2.000, 3. ed rev. atual. e ampl, p.313). “A alienação fiduciária em garantia, introduzida no direito brasileiro pela Lei de Mercado de Capitais” (lei n. 4.728/65, art. 66, com a redação dada pelo Dec.Lei n. 911/69), é espécie do gênero/negócio fiduciário.” (Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial. Saraiva, 2.000, vol. 3, p. 137). “Em absoluto rigor técnico, são espécies de negócio fiduciário a alienação fiduciária em garantia, a cessão fiduciária em garantia e o negócio fiduciário de administração e são sub-espécies as discriminadas no texto: a alienação fiduciária tem por objeto coisas móveis, coisas fungíveis e imóveis e a cessão fiduciária de direitos de diferentes naturezas, inclusive a cessão fiduciária para fins societários.” (Melhin N. Chalhub, Negócio Fiduciário. Renovar, 2.000, p. 63/4). Em sentido contrário, José Carlos Moreira Alves: “Em conclusão, verifica-se que a alienação fiduciária em garantia, negócio jurídico típico que é, não se enquadra entre os negócios fiduciários propriamente ditos, diferenciando-se, também, dos negócios fiduciários do tipo germânico; e, ainda, que apresente semelhanças com o trust receipt e vários pontos de contato com o chattel mortgage, é instituto próprio do direito brasileiro, em cujo sistema – do qual, à primeira vista, parece aberrar – se ajusta dogmaticamente, já prestando amplo benefício como instrumento jurídico adequado à segurança do crédito”. (Da Alienação Fiduciária em garantia, Forense, 1.987, 3a ed., p. 46 e 137).
[17] Art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728, de 1.965, incluído pela Lei nº 10.931, de 2.004.
[18] Art. 17, IV, da Lei nº 9.514, de 1.997, que visa facilitar o financiamento imobiliário.
[19] Art. 1.361 do Código Civil.
[20] Art. 17, IV, da Lei nº 9.514, de 1.997, que visa facilitar o financiamento imobiliário.
[21] Art. 22 da Lei nº 4.864, de 1.965, que se destina a estimular a construção civil.
[22] Art. 17, II, da Lei nº 9.514, de 1.997.
[23] Art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728, de 1.965, incluído pela Lei nº 10.931, de 2.004.
[24] A Quarta Turma, no REsp. nº 1.263.500/ES, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 05/02/2.013, DJe. 12/04/2.013, Informativo de Jurisprudência nº 514, de 20/03/2.013, decidiu que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial “a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e títulos de crédito”. Sobre o tema, recomenda-se a leitura da ótima dissertação de mestrado de Cláudia Patrícia Borges Azevedo, sob a orientação do Prof. Dr. Newton De Lucca, Cessão Fiduciária de Direitos sobre Coisas Móveis no Âmbito do Mercado Financeiro e de Capitais, disp. www.bndes.gov.br.
[25] A cessão fiduciária é uma cláusula especial do contrato de empréstimo ou de financiamento, denominada “pacto adjeto”, ou pacto acessório”, que pode ser acordada em uma cláusula do contrato principal ou em documento apartado, conforme leciona Orlando Gomes, in Contratos, Forense, 2.009, 3ª. ed., p. 305, e que visa resguardar o fiduciário de eventual inadimplemento da fiduciante da obrigação de quitá-lo.
[26] “Assim, num caso típico de negócio fiduciário, a transferência da propriedade para fins de garantia, a transmissão de propriedade é efetivamente desejada pelas partes, não, porém, para o fim de troca, mas para um fim de garantia” (Tullio Ascarelli, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, Saraiva, 1.945, p. 106).
[27] Cláudia Patrícia Borges de Azevedo, na mencionada dissertação, com supedâneo em lição de José Carlos Moreira Alves, esclarece a “diferença entre alienação fiduciária e propriedade fiduciária: alienação fiduciária em garantia é, tão somente, o contrato que serve de título à constituição da propriedade fiduciária, que – esta, sim – é a garantia real criada, em nosso direito, pelo art. 66 da Lei nº 4.728, modificado, posteriormente, pelo Decreto-Lei nº 911.” (p. 85)
[28] Diferenças entre recebível performado, não performado e fluxo futuro, in SINFAC-SP – Sindicato das Sociedades de Fomento Mercantil e Factoring do Estado de São Paulo, disp. www.sinfacsp.com.br
[29] “O fiduciário é titular de um direito sob condição resolutiva; em face da transferência em garantia, é dono dos bens transferidos de modo restrito e resolúvel. A extinção desse direito de propriedade está prevista no próprio título constitutivo. É um negócio jurídico (por conseguinte, contrato fundado em relação obrigacional) que constitui um direito real de garantia condicional. A condição resolutiva, na hipótese, é adimplemento da obrigação assumida. Emerge daí sua característica essencial, que a define.” (Luiz Edson Fachin, Comentários ao Código Civil, Saraiva, 2.003, Vol. 15. p. 340).
[30] Melhin N. Chalhub, em seu excelente livro Negócio Fiduciário, ao tratar da definição da cessão fiduciária de direitos creditórios imobiliários, leciona: “Por esse contrato, o tomador de um financiamento transfere seus direitos de crédito à instituição financiadora, que os adquire, como cessionária fiduciária. Essa transferência de titularidade não se faz em caráter pleno e definitivo, mas, tendo escopo de garantia, tem caráter limitado quanto ao conteúdo dos direitos transmitidos ao titular e, também, caráter temporário – serve a cessão somente para que o cessionário-fiduciário receba recursos para satisfazer seu crédito e perdura somente enquanto perdurar esse crédito.” (Ob. cit., p. 323).
[31] Arnoldo Wald, Estudos e pareceres de direito comercial, 1.979, p. 192.
[32] Ao lecionar sobre “contratos conexos e grupos de contratos”, Arnoldo Wald ensina: “A conexidade do plano contratual corresponde à acessão nas relações entre os bens. Do mesmo modo que certos bens são acessórios em relação a outros, determinados contratos são dependentes, subordinados ou conexos com outros. A conexão surge entre dois contratos independentes ou entre um contrato principal e outro acessório. (…) Deste modo, há conexão entre o contrato de locação (principal) e contrato de fiança (acessório), ou numa venda de imóvel na planta, em que as partes distinguiram a venda da quota do terreno e a construção de benfeitorias, entre os contratos de venda do solo e de empreitada (em relação ao apartamento ou casa a ser construída)” , in Arnoldo Wald, Direito civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos, Saraiva, 2.011, 20. ed., p. 291.
[33] Introdução ao direito civil, Forense, 1.971, 3ª ed., p. 342/343, nºs. 268/269.
[34] Ob. cit., p. 322/325.
[35] Pontes de Miranda, in Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo XXII, Capítulo I, RT, 1.984, p. 41: “No art. 1.174 do Código Civil italiano, diz-se que a prestação que é objeto da obrigação deve ser suscetível de valoração econômica.” (grifo do autor)
[36] “A prestação, em última análise, é um ato ou uma abstenção a que fica adstrito o devedor em benefício do credor. A prestação, portanto, pode ser positiva ou negativa, aquela consistente em ação e esta em omissão. Essencial é que a prestação seja lícita, possível, útil ao credor, determinada ou determinável e econômica, isto é, avaliável em dinheiro.” (J.M. Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, Freitas Bastos, 1.961, vol. VI, p.11).
[37] “Na obrigação de dar, compromete-se o devedor a entregar alguma coisa, que pode ser, todavia, certa ou incerta, específica ou genérica”. (Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 1ª. Parte, Saraiva, 20ª. ed., p 55).
[38] “Nas obrigações de fazer, a prestação consiste num ato do devedor, ou num serviço deste. Qualquer forma de atividade humana, lícita e possível, pode constituir objeto da obrigação.” (Washington de Barros Monteiro, ob. e vol. cits., p. 86).
[39] Ob. cit., Tomo XXII, Capítulo IV, RT, 1.984, p. 43/44.
[40] Obrigações, Forense, 16ª. ed., p. 21
[41] Ob. cit., p. 23.
[42] Instituições de Direito Civil, Teoria Geral das Obrigações, Forense, 21ª. ed., vol. II, p. 21.
[43] Saraiva, vol. III, 1.973, p. 22.
[44] Entende-se por direitos creditórios segundo a ICVM nº 356/2.0001: “Art. 2º Para efeito do disposto nesta instrução, considera-se: I – direitos creditórios: os direitos e títulos representativos de crédito, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, e os warrants, contratos e títulos referidos no § 8º do art. 40, desta Instrução.”
[45] Lei de Mercado de Capitais, art. 66-B c/c Código Civil, art. 83, III.
[46] Lei de Mercado de Capitais, art. 66-B, c/c Código Civil, art. 83, III.
[47] Art. 2º, IV, da Resolução CVM nº 60/2.021.
[48] J. 09/04/2.019, DJe. 12/04/2.019.
[49] Cf. Rafael Arsie Contin, A cessão fiduciária do direito do acionista aos dividendos no direito privado brasileiro, dissertação de mestrado, notas 21 a 23, disp. www.teses.usp.br
[50] Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, Martins Fontes, 2.002, p. 127/203.
[51] Hart, ob. cit., p. 324.
[52] Hart, idem, p. 326.
[53] Problemas de Filosofia do Direito, Martins Fontes, 2.007, p. 363.
[54] Ob. cit., p. 360.
[55] Idem, p. 377.
[56] Hart, ob. cit., p. 326. Na atualidade, com o desenvolvimento da IA e das inúmeras operações globais decorrentes de novas tecnologias digitais, são comuns os “casos inéditos”, por conseguinte que não estão previstos no direito positivo.
[57] Hart, ob. cit., p. 161/166 e 325/327. Nestes casos, Hart considera que eles estão numa zona de penumbra de incerteza. (p. 325).
[58] Uma questão de princípio, Martins Fontes, 2.000, p. 177.
[59] Levando os direitos a sério, cit., p. 131.
[60] Levando os direitos a sério, cit., p. 209/210.
[61] Hart, no Pós-escrito de sua obra seminal, diz que Dworkin acabou formulando, tempos depois, uma “concepção teórica muito próxima da minha ao reconhecer que os tribunais têm de fato exercido uma discricionariedade na criação do direito, e o fazem com frequência.” (p. 392)
[62] Martin Stone, professor titular de direito e de filosofia da Duke University, in Interpretação e método na teoria jurídica, Direito e Interpretação – Ensaios de Filosofia do Direito, coord. Andrei Marmor, Martins Fontes, 2.000, p. 123.
[63] Hart, ob. cit., p. 352
[64] Direito e Justiça, Edipro, 2.000, p. 165/174.
[65] Ob. cit., p. 175.
[66] Ob.cit., Abeledo-Perrot, 1.961, p. 15.
[67] Problemas de Filosofia do Direito, Martins Fontes, 2.007, p. 614.
[68] Ob. cit., p. 618.
[69] Idem, p. 621.
[70] Martins Fontes, 2.009, p.4.
[71] Ob. cit., p. 5.
[72] Idem, p. 7.
[73] Daniel Sarmento, Os princípios constitucionais e a ponderação de bens, in Teoria dos direitos fundamentais, coord. Ricardo Lobo Torres, Renovar, 2.001, p.56.
[74] Coord. Carlos Henrique Abrão e Paulo F.C. Salles de Toledo, Saraiva, 6ª. ed., p. 183/185.
[75] Luiz Edson Fachin, Comentários ao Código Civil, Saraiva, 2.003, vol. 15, p. 340.
[76] Fronteiras da Teoria do Direito, Martins Fontes, 2.011, p. 10.
[77]. Redressement et Liquidation Judiciaires des Entreprises, Dalloz, 3ª. ed., p.17. Na p. 19, os e. professores lecionam; “Dans la mesure ou le tribunal se voit conférer le pouvoir de prendre des décisions de caractere exclusivement économique, il est certain qu’il se produit une ‘déjuridicisation” de la matière qui n’est plus proprement juridique.”
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